Cheiro de Suor

Publicado em 23 de novembro de 2020

Renato Benvindo Frata

Meu pai era caixeiro-viajante. Saía na madrugada na segunda para diversas cidades e retornava na sexta com o último ônibus da Garcia, de sorte que nossos contatos se davam nos fins de semana. Aos sábados ele se sentava à mesa da sala, retirava de sua pasta de couro surrado talões de pedidos e cheques que recebera. Separava-os, dobrava-os e os envelopava. Subscrevia o envelope, selava-o e o fechava com auxílio da saliva. O destino era a Tipografia e Livraria Brasil, hoje Tilibra, sua patroa. E lá se vão mais de sessenta anos.A rotina ditava as regras: enquanto ele mexia com papéis, minha mãe lavava as roupas que ele usaria na semana seguinte. Engomava camisas, passava-as, dobrava-as e as colocava envolvidas em toalha em uma das repartições da grande pasta.

Naquele sábado levei o caderno de deveres e me sentei com ele. No primeiro momento não nos falamos, até que a curiosidade me fez mexer na sua pasta e senti que vazia já era pesada, mas mesmo assim me pus a andar pela sala como imaginei que ele fazia ao visitar clientes. Depois coloquei-a de novo na mesa e a abri. Ele parou de escrever, olhou-me e nada disse. Sondava minha curiosidade; a de um menino de quase dez anos. 

Não satisfeito, eu a abri forçando a abertura, momento em que vi que ela continha quatro divisões também de couro. A primeira estava suja da tinta de papel carbono usado nos blocos; a segunda era mais larga e continha fiapos de tecido. Era a que abrigava as roupas; na terceira havia uma lata onde guardava apetrechos de barba e banho e na quarta repartição, estranhei a falta de uso. Parecia novíssima com lustro de couro novo.

Olhei-o com interrogação e perguntei: “– Por que o senhor não usa essa repartição? – ao que ele respondeu: 

“– Eu sempre a uso, todos os dias…”

“– Mas está vazia…” – insisti. 

– “Não está, somente aparenta, mas é tão usada quanto as demais, sinta seu cheiro…”

Meti ali o nariz e aspirei com força. Olhei-o de novo e ele se mantinha sério. 

“– Ué, tem cheiro de couro… mais nada…” 

“– Pois cheire sem tanta pressa, como se fosse a uma flor… vamos, cheire e sentirá…”

E mais uma vez aspirei na abertura intacta da pasta. 

“– O cheiro é bom? É capaz de reconhecer sua essência?” 

“– Não. Só o de couro, mesmo…” – 

“– Que pena, aí tem o suor de sua mãe e o meu…”

E ficou nisso. Pelo sim, pelo não, fechei a pasta, voltei aos meus cadernos e ele às suas anotações. Passados anos de seu falecimento e sentindo o quanto a vida exige para que tenhamos dignidade, compreendo o sentido da frase enigmática: não havia mesmo suor na bolsa surrada, claro; eu é que não captei a metáfora. Havia em todos seus compartimentos um suor especial que não tinha cheiro, mas um especial perfume de denodo, de valentia, de empenho, de audácia, de coragem, de ousadia, de desenvoltura e de doação, que nesse caso se sintetizam no imenso amor paternal que põe nas mãos dos pais a força descomunal de gigantes, e os transformam em heróis nas benesses e vicissitudes. 

Ouso dizer com um sorriso nos lábios: bendita bolsa surrada por tanto tempo carregada e benditas mãos que não questionavam as tarefas de limpar, lavar, engomar e passar… Um time não é feito só de técnico, nem só de jogador.

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