Renato Benvindo Frata
O bem-te-vi acordou o dia, levantei-me e me paramentei: luvas, máscara, boné. Olhar o mundo pela janela se tornou ruim, então resolvi sair. A pandemia deu-me protuberância abdominal que não pedi e cor de parede que não quero, de sorte que a caminhada de passos ligeiros irá arrancar-me suor e, raios de sol em abundância, recolocarão a cor nesse momento angustioso.Respiro ar fresco: pela hora, dificilmente encontrarei aglomeração de pessoas. Ganho as ruas, invado quarteirões, avanço quadras, descidas e subidas em asfalto sujo e observo casas fechadas e com seus jardins descuidados, tristes como os donos presos nelas. As ferramentas de jardins por certo se encontram aprisionadas também pelo carcereiro e carrasco medo; com isso folhas caídas não são recolhidas, a grama sem viço se encaroça nos vãos das calçadas, as pragas daninhas crescem e um cheiro de desmazelo é empurrado pelo vento na dança funesta que empesta o todo.
Continuo a caminhada, a máscara de tecido obriga a que respire pela metade e isso me dá sensação estranha. O ar entrecortado entra aos goles, então me canso. Avisto um banco de praça e me sento, percorri mais de que podia a distância de uma caminhada razoável, já que deverei voltar às paredes brancas e ao descanso construtor de barriga. Aproveitando o momento íntimo, reflito: a cidade sombria, poeirenta, melancólica continuará e nem o brilho do sol com sua potência conseguirá penetrar o negrume que a pandemia estendeu ao fincar placas impeditivas do “nada pode!”
O isolamento traz apatia; o distanciamento tira-nos a família e amigos e força que substituamos abraços, olhares, conversas e carinhos por mensagens vazias de celular. As reuniões íntimas, aniversários de família e amigos, festas populares, eventos culturais, reuniões religiosas, o simples cafezinho no balcão… tudo rolou na ribanceira Covid. Viramos zumbis medrosos e reticentes. Perdemos a altivez, a vontade, a coragem de enfrentar com trabalho as agruras da vida. Perdemos a liberdade. Uma lástima. Se é verdade que só damos conta do valor das coisas quando as perdemos, essa pandemia nos trouxe, em letras graúdas, a demonstração de que aquilo que tínhamos como comum e corriqueiro, de fato eram atributos maiores de nossa existência, cuja perda nos faz descobrir e avaliar seu valor, lembrando que o pior ainda não chegou.
Diariamente somos tocados por notícias tristes: são os internamentos, mortes de vizinhos, amigos e parentes, as dificuldades que se acercam de todos, o desemprego que assola independentemente da idade, escolaridade e profissão, as contas que se vencem sem a trégua dada aos créditos, a falta de produção, empresas que se fecham em definitivo… As notícias em nível Brasil são desesperadoras, a morte parece escorrer da boca dos apresentadores que com interpretação de terceira trazem pavor e dão azo à politização da doença em busca de proveito político. Os desmandos de quem deveria bem mandar, a roubalheira solta em nome da doença, o descrédito nas instituições, a descrença generalizada e a certeza de que o negrume tende a se fixar por muito tempo.
Respiro desesperançado, ergo-me e me ponho de novo às ruas. Meus passos já não têm a segurança de antes, são incertos, dúbios e mais vagarosos, mas volto olhando casas fechadas e jardins não cuidados. O bem-te-vi que cumpriu a tarefa, há muito se foi. Vê-se um e outro pássaro menos barulhento a perambular galhos à cata de comida; cães dormindo rodeados de moscas. Tento sorrir, mas meus lábios querem chorar e minha tristeza insiste sair em gotas. Pigarreio e os espanto, não cederei, não me deixarei vencer e, por mais que difícil que pareça, mesmo com os passos tão lentos e incertos como os meus, no retorno à casa, a pandemia haverá de fraquejar e se desfazer. Até lá é só esperar.
Então construo mentalmente um túnel e o tateio a procurar seu fim. Sinto que uns passos a mais me levarão à primeira curva e dali, talvez, verei uma pequena luz…A esperança me diz que sim e contra essa não há Covid nem adversários que possam vencer…
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