Ode a Alguém Especial

Publicado em 27 de maio de 2020

por Renato Benvindo Frata
A pandemia trouxe a insônia que me tirou da cama, consequência da ansiedade pelo recolhimento de mais de sessenta dias. Eram três e meia quando conferi portas e janelas, apaguei luzes e, curioso, espiei. O vazio com a lua engolida compunha sombras empanando o tempo. Tempo que pesa na lentidão do ócio frio ditador de regras e de medo nesses dias tristes.

Na espiada perscrutei se janelas vizinhas também tinham olhos e, certificando a quietude sombria, fixei o olhar num ponto. Tive que sorrir porque lá estava ela virginalmente nua em plena madrugada, livre, gotejada pela frágil névoa que inventou descer, e solta sem se preocupar em ser vista por olhos como os meus, famintos de não sono que invadiam sua intimidade. Despudorada me pareceu ao não se recear com as folhas desprendidas que buliam em ziguezagues arrastando-se nela, nem com o vento burilador que bailava lambendo-a. Na madrugada, coisas acontecem… 

De onde eu estava, porém, alguns arbustos lá de fora impediam que a visse por inteiro, o que me fez procurar melhor lugar. Com passos apalpados e silentes abri a porta esgueirando-me na escuridão banhada por réstias de luz de postes que amarelando vãos, reavivavam o verde ressequido dos quintais. Nenhum cachorro a importunar o sossego, nenhum pássaro inventou cantar, nem o bem-te-vi que sempre acorda a manhã com esgoelares. Então consegui vê-la na sua forma perfeita, sem pressa, de alto a baixo até onde a visão levou, e pude notar o quão bela estava, assim solitária à disposição de um aconchego mais quente, de um afago talvez, exposta a mim como nascera, a mostrar protuberâncias e reentrâncias sem qualquer pudor. Olhei-a com o olhar de quem encontra a beleza, mas me acabrunhei de repente. Seria certo? Perguntou a consciência. Ela mesmo respondeu: – devassar intimidades nunca foi recomendável! 

Tomado pelo susto em quase transe, cobri o rosto com as mãos até que nova brisa assoprou acordando folhas e me alertou. Era o recado da manhã: a solidão, esse sentimento que pede por transformação é capaz de inventar, de construir, de enredar e também desfazer sonhos. E trazer bocejos que expulsam insônia. 

Outra rajada desfez a quase hipnose do pouco dormir e me levou para dentro, embevecido com sua beleza. Fechei a porta, voltei para a janela percebendo que o clarão já desfazia brumas, sinal que o dia mostrava a cara. Olhei-a novamente e, quanto engano! A bela nudez da noite se desfizera pelo sol que cuspia raios luminosos sobre ela, para mostrar suas imperfeições: há mil ranhuras na sua pele, buracos na carne, sujeira nos vãos e mal cheiro nas axilas, o que a faz vulgar e relaxada. Que desilusão! Fecho os olhos para não ver, com raiva digo bom dia e me recolho a contragosto. Deito-me irresignado entre lençóis amarfanhados e penso: 

– A bela admirada sob o distúrbio do não dormir, tão usada por pessoas e veículos na fluência do trânsito para o centro, está a merecer mais atenção, especialmente nos bueiros fedidos, nas guias irregulares, na sinalização apagada. Mais limpeza pede a Rua Bahia, e por igual pedem, com certeza, as demais ruas da cidade. 

Que o poder público e os munícipes façam cada qual a sua parte, para que o insone hipnotizado, como o desta crônica, possa, sob lençóis possa sonhá-las belas até sob o clarão do sol.

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