Cigarros e fumaças

Publicado em 01 de maio de 2020

Renato Benvindo Frata
Já fui fumante dos bons. De maço e meio a dois por dia. Em sábado de baile, quase três, cuja fumaça se misturava ao rum e à minha personalidade. Na maioria das fotos apareço com um cigarro entre dedos. Dedos amarelos fumegados, nariz amarronzado, pele áspera, cabelo fedido, mas feliz com eles servindo de tição de um para o outro, na economia prazerosa do fósforo. Nas horas de sossego envergava um belo cachimbo fabricado com nó de roseira, muito especial, que eu entupia de fumo Half and Half. E a vida seguia linda.
Comecei com o Beverli, passei para o Storil, Continental sem e com ponta, para o Hollywood curto e longo, aderi ao Minister que me deixou uma pigarra seca e outros que eu queimava desde ao acordar, para terminar no Malboro no dia em que um médico, após um check-up, segurou para si o maço enquanto mostrava-me pulmões, corações, intestinos, fígados de pacientes tabagistas seus que já haviam partido. Foi o que bastou para que largasse de vez o hábito, mesmo que passasse mal, que suasse frio, que minhas unhas virassem complemento de almoço, que o procurasse avidamente nos bolsos, gavetas e guimbas do cinzeiro.
Passaram-se anos na abstinência sem que o botasse nos lábios, porque com o tempo a fumaça passou do prazer ao asco, como acontece aos ex-fumantes.
Até que viesse essa pandemia e me trancasse dias e dias ininterruptos pondo-me à frente de repórteres alarmistas, da Maju, Renata e William que babam sangue quando falam da tal. E o misturam aos problemas políticos ainda de 2018 e sem prazo para terminarem.
Essa aflição mexeu comigo de tal forma que senti vontade do bendito cigarro fazendo com que meu brio fosse para o espaço e, mesmo resistindo, corri ao boteco e comprei um maço com letras vermelhas em cartão branco, tal qual o último maço que havia fumado há mais de 40 anos.
Admirei que nesse tempo, seu consumo não tivesse exigido a mudança de embalagem, e então, escondido, surrupiei uma caixa de fósforos da cozinha, corri para o fundo do quintal como faz o moleque levado à breca e, num canto o acendi. Aspirei uma gigantesca porção com paixão, à toda capacidade dos pulmões… E o que era para ser bom, maculou minha boca e garganta: o fumo teve um gosto horrível de macaia, de terceira categoria, de restolho do campo, o que me obrigou a imediatamente cuspi-lo.
Decepcionado, olhei o maço com atenção e entendi a confusão: o fabricante, inescrupuloso, aproveitando-se da semelhança entre as marcas, fez trocar o B de Malboro, por M. E a coisa ficou intragável…
Não dá mesmo para engolir.

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