Por Deltan Dallagnol
“Uma vez um juiz julgou quem havia ditado a lei. Primeiro mudaram o juiz. Logo em seguida mudaram a lei.” (Fabrizio De André)
Não haveria melhor síntese do que acontece hoje no Brasil, não fosse essa epígrafe uma descrição da Operação Mãos Limpas na Itália, irmã mais velha da Lava Jato. Ambas as investigações, filhas da busca pela democracia e do desejo de um país mais honesto, sofreram o mesmo destino. Isto porque, como na Itália, no Brasil há uma perversa associação do poder político e do econômico para roubar o país. O capitalismo de compadrio distribui cartas marcadas. No seu jogo, eles nunca devem perder. Entretanto, procuradores, juízes e policiais ousaram usar a lei para desafiá-los e, em alguns momentos, venceram.
Contudo, se os poderosos perdem, mudam as regras. Quando há ladrões com poder político, a lei se torna um instrumento ineficiente para enfrentar a roubalheira. Vitórias não são sustentáveis, pois a lei é argila esculpida por mãos corruptas. Mais cedo ou mais tarde, eles moldam a lei a seu gosto.
Já tratamos, nas semanas anteriores, sobre como a corrupção é danosa e se retroalimenta. Enquanto deveríamos estar avançando contra esse problema, rumamos na direção oposta. Depois, abordamos uma decisão e uma alteração legislativa recente que minaram as colaborações premiadas, motor propulsor da Lava Jato. Veremos, agora, mais uma faceta do desmonte do combate à corrupção.
Se os poderosos perdem, mudam as regras. Quando há ladrões com poder político, a lei se torna um instrumento ineficiente para enfrentar a roubalheira
No início da Operação Mãos Limpas, no auge da indignação popular, surgiram projetos de lei contra a corrupção. Contudo, no debate parlamentar, o combate ao crime foi substituído pela discussão de supostos “abusos de autoridade” praticados por juízes e procuradores. Em seguida, o sistema corrupto virou o jogo e aprovou leis em favor da impunidade.
Aqui, dentre outros retrocessos no esforço anticorrupção, a independência das instituições foi colocada sob ameaça pela nova lei de abuso de autoridade. Agora, autoridades que ousarem enfrentar poderosos responderão por essa audácia como se fossem eles os criminosos. É uma inversão de papéis.
É certo que a lei de abuso de autoridade anterior, de 1965, estava defasada, sendo necessária sua revisão para ampliar crimes e endurecer penas. Todavia, sob esse pretexto, dentre outras regras que constituem avanços, foram criados crimes que prejudicam a atuação legítima contra criminosos com poder.
A nova lei criminaliza, por exemplo, a realização de uma prisão “em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. É crime também deixar de soltar alguém sujeito a prisão manifestamente ilegal ou de deferir habeas corpus quando manifestamente cabível. É claro que ninguém deve ser preso injustamente. Contudo, o que é uma prisão “manifestamente incabível” é uma questão de interpretação e retórica. Como diz o ditado, “cada cabeça, uma sentença”. Pessoas razoáveis discordam razoavelmente sobre a interpretação da lei e dos fatos e podem defender com ênfase suas posições, desqualificando outras como “manifestamente” equivocadas.
Isso coloca juízes debaixo de um risco desproporcional quando decretam a prisão de poderosos. A experiência mostra que estes têm acesso aos tribunais por meio de hábeis advogados e podem ter sua prisão revertida mais facilmente. Eles passam a ter em suas mãos, agora, a faculdade de retaliar.