Era madrugador, daqueles que acordam o galo para vê-lo cantar fora do horário. Naquela manhã não foi diferente: levantou-se, lavou-se na bacia, acendeu o fogo com uns gravetos e gritou da porta da cozinha:
– Betânia, Paquita, Margarida… vâmo… tá na hora… – Já acostumadas, as vacas rumaram para a mangueira guiando o restante delas. Ordenhou-as, mediu o leite dos latões, anotou no caderno para o patrão conferir, colocou os latões sobre a charrete e encilhou Barbabé, o velho burro troteiro. Tião era trabalhador, homem de brio nas ventas, de pouca fala e pouco riso; modesto nos gastos porque o único sinal de nascença era ter nascido pobre e permanecido assim.
Voltou à cozinha onde Maria já punha o café com broa e queijo fresco e, na ânsia de trabalhar engoliu tudo às pressas, porque o dia era curto demais para o montão de tarefas. Limpou a boca, trouxe Maria pra perto e lhe deu um beijo na testa. Ela quis outro, ao que então ele caprichou na pegada.
– Tá precisada, – pensou – cuido disso logo mais… – e se meteu a caminho da porteira onde esperaria por Germano, o leiteiro que transportava o leite para o laticínio. Depois voltaria, soltaria Barnabé no pasto fresco, guardaria a charrete na beira da mangueira e, de enxada às costas, marmita no embornal pendurado ao ombro, toco de fumo, palha e binga no bolso, rumaria para o roçado cuidar do feijão que floria de fazer brotar sorriso, viçoso que estava. Cuidaria do roçado até o sol tostar o lombo, depois mandaria pros peitos o angu com frango da marmita, fumaria seu “troncoso” de espantar moscas, cismaria com uma vida melhor e, de novo na lida, passaria a tarde com o cabo da “guaivara”, até o anoitecer. Aí, depois do banho, a sopa bem reforçada, as orações na capela e os conselhos de boa convivência e respeito pelas coisas do alheiro, que dava a uns piás no salão de festas do terreiro da igrejinha, vizinho ao sítio onde morava.
Cismar era bom, ajudava-o organizar o tempo e concatenar as ideias, e com isso saía do estado de ansiedade que o envolvia quando tinha muita coisa a fazer.
Em uma das curvas do carreador, porém, estarrecido viu o que já mais pensara presenciar: um corpo caído, meio corpo cá, meio corpo lá na beira do capão de mato. Do lado entre as moitas, uma bolsa preta, de lona suja.
– Ôooooa… – puxou com força as rédeas de Barnabé, pulou da charrete e correu até onde ele se encontrava.
– Puta merda! O cabra tá morto… – falou para si, e com um frio danado na espinhela ameaçou correr de um lado e outro, mas se conteve. Coração aos pulos tomou a respiração, aprumou-se na coragem, tateou o homem que não mais respirava e concluiu:
– Pela mancha de sangue, parece tiro… Caramba! – Deve ser um dos ladrões, da notícia do rádio…
Atarantado, passou a mão pelo rosto, sentou-se no barranco, pensou um pouco e resolveu: levou os latões como de costume, transferiu o leite para o tambor do transportador e se despediu voltando ao local da tragédia. Recolheu a bolsa, espremeu-a a enfiando num dos seus latões, tampou bem e rumou para a cidade. Era seu dever noticiar o fato ao Delegado.
– E o dinheiro roubado? – Perguntou aquele.
Fez cara de coitado, de quem não entendera.
Bem, já estava na hora de deixar que outro da vizinhança assumisse as preleções de bons costumes aos endiabrados…
PS: qualquer semelhança com fatos atuais pode ser mera coincidência
Fui levado quando criança a uma pescaria à beira de um de nossos, à época, arborizados riachos que, por ventura, acabou resultando em fartura de peixes, razão pela qual imaginaram que eu havia lhes trazido boa sorte. Tencionaram levar-me novamente, desta vez num carro emprestado de um vizinho que tinha um filho quase da minha idade, bastante empolgado para ir conosco. Entretanto, a lotação máxima do automóvel tinha sido atingida. Ao saber que ele não iria, desatou-se o berreiro, até o ponto em que os adultos decretaram que nós dois permaneceríamos em casa, quando, surpreendentemente, ele se aquietou, satisfeito. Naquele momento, escancarou-se que o que angustiava o guri não era o fato de ele ser privado da diversão mas, por eu estar indo e ele não. Mesmo porque não fazíamos muita questão da companhia um do outro.
Coisa de criança, muitos condescenderão, sem atinar para alguns marmanjos e marmanjas, a modo de exemplo, que a quase meio século atrás tiveram suas casas construídas no meio do areião, e que somente agora, depois das pavimentações concretizando-se de fato, insultam raivosamente a cidade da qual tiram seu sustento. Mal conseguindo, tentam disfarçar seu real propósito, que é destilar sua amargura contra a dignidade conquistada por aqueles contemplados com o asfalto. Outros que não tiveram sua rua incluída no projeto, se pudessem, paralisariam o trabalho nas vias vizinhas. Estes são os cidadãos adulados e tratados com deferência pelos agentes midiáticos locais e seus financiadores.
Caro Dr. Renato.
Seu texto nos remete à uma triste realidade cultural da nossa gente e de sua facilidade de abrir mão dos bons costumes. Talvez por isso, por esta “cultura”, o eleitor tenha dificuldade de perceber a diferença entre um corrupto e uma pessoa de bem na hora de votar. Como consequência, o País está neste estado lastimável.
Parabéns pela crônica